sábado
DISFARÇADA
Recentemente, foi publicado um livro intitulado “Uma Autobiografia Disfarçada”. É seu autor um antigo diplomata, que conta 84 anos de idade.
É natural que o cavalheiro desejasse ver publicada uma biografia sobre a sua figura. Decidiu ser ele próprio a redigir o livro.
O resultado não é famoso.
Ao longo das duzentas páginas, o autor recorre frequentemente a comparações com outros colegas, das quais ele sai sempre em vantagem.
Faz questão de relatar que, na década de cinquenta, obteve melhor classificação do que Vasco Futscher Pereira e João Sá Coutinho. Este último “ficou muito desanimado”. Mas valeu-lhe o autobiografado: “animei-o”.
O brilhantismo da sua mente não fica esquecido: “a minha inteligência é considerada acima do normal, mas talvez sem atingir o nível de excepcional”.
Não era nada disso que se passava com outros funcionários. O Embaixador Abranches Pinto era “apenas um diplomata normal”. Quanto a Aristides de Sousa Mendes, tratava-se de “um funcionário com uma carreira apagada” e “um funcionário normal”. Aliás, Aristides “pertencia à carreira consular, considerada carreira menor”. Milton Moniz teve mais sorte. Era “apenas um funcionário acima da média”.
Assim, compreende-se que Antunes Varela tenha escrito uma carta ao autor deste livro. E conta o diplomata: “na carta do Antunes Varela falava-se do apreço de Theotónio Pereira por mim”.
Mas o melhor estava para vir.
Em 1967, o autor recebeu enviados do Presidente do Biafra.
Algum tempo depois, Ojukwu, Chefe de Estado daquele país, assinou uma cartinha simpática, dirigida ao diplomata. A carta é reproduzida, na sua língua original, sendo de destacar os desejos do Presidente: “I wish you every luck”.
O funcionário português apreciou: “não fui insensível aos cumprimentos e aos elogios provindos de um Presidente”. Aliás, segundo a sua interpretação, naquela carta, ele, destinatário da missiva, “era considerado um actor importante”. Enfim… não é o mesmo do que receber um Óscar, mas anda lá perto.
Verdadeiramente tocante foi um importante acontecimento ocorrido há quase 27 anos. O empresário Jorge Jardim, conhecido pelas suas actividades em Moçambique, enviou-lhe um cartão de Boas Festas: “comoveu-me receber, no Natal de 1981, um cartão seu a desejar-me as melhores felicidades para o Ano Novo”.
ESPINHOS
Nem tudo foram rosas.
Um seu chefe, o Embaixador Vasco Vieira Garin, parece não ter acertado: “o grau da minha inteligência, para Vasco Garin, não passava de normal”.
Em 1969, o nosso diplomata encontrava-se em Itália. A mais popular fadista deslocou-se a Roma, a fim de actuar no Teatro Sistina.
O autor explica o que se passou: “não conhecia Amália Rodrigues, nem sequer a tinha ouvido cantar ao vivo”.
Convidaram-no a assistir ao espectáculo e ele aproveitou: “pedi mais alguns bilhetes destinados a amigos que desejava convidar”.
A desfeita foi imperdoável: “com surpresa, os bilhetes tardaram em chegar à Embaixada e, como se isso não bastasse, correspondiam a lugares mal situados”. Escandaloso!
Quando o autor se encontrava colocado nos Estados Unidos da América, eram frequentes as visitas do Presidente dos Açores. Todavia, este agia incorrectamente: “com Mota Amaral os mal entendidos eram frequentes, atendendo ao amadorismo da programação das visitas”.
Absolutamente indesculpável foi o que sucedeu em 1999: “ninguém se lembrou de me convidar para as cerimónias da entrega de Macau à China”.
TELEFONEMAS
O autobiografado guarda boas recordações de Salazar. Enquanto este assumiu a pasta dos Negócios Estrangeiros, era frequente ser o nosso diplomata a atender as chamadas telefónicas do Ditador. Era algo de único: “julgo que em nenhum outro Ministério ocorreram circunstâncias que permitiram a um funcionário de nível relativamente modesto ter acesso a Salazar”. E que meiguice: “nunca lhe ouvi um comentário áspero ou autoritário. Salazar sempre falou como o mais comum dos mortais”. Enternecedor...
No meio de tantas aventuras e desventuras, o autor decide dar a sua opinião sobre o Cônsul Aristides de Sousa Mendes, que salvou a vida de 30 mil judeus.
Em 1976 – encontrando-se o autor em Washington –, a Embaixada portuguesa recebeu pedidos de informações sobre Aristides, provenientes de familiares de judeus salvos por ele. Esclarece o diplomata que alguns destes pedidos eram-lhe “dirigidos directamente”!
É claro que ele percebeu logo do que se tratava. Ou não fosse ele pessoa com “inteligência acima do normal, mas talvez sem atingir o nível de excepcional”.
Esses judeus queriam era “enaltecer a figura daquele colega e denegrir Salazar”.
Veja-se bem! Enaltecer Aristides de Sousa Mendes! E denegrir Salazar! Inaceitável!
Naturalmente, isso seria desadequado. O Presidente do Conselho puniu Sousa Mendes, determinado a sua aposentação compulsiva. Mas, segundo o diplomata-escritor, “parece incompreensível criticar” Salazar por tal atitude.
O autobiografado até coloca uma hipótese: “o cônsul em Bordéus não passava de um homem fraco, sem estatura”.
Não maço mais os leitores com estas citações. Vou lá fora, deitar o livro no lixo.