terça-feira

AO MEU AMIGO, O MEU PEIXE E O MEU VINHO



Para julgamento, o caso poderá ir parar a uma Vara Criminal. Por enquanto, decorre o inquérito.
Um dos visados relatou uma versão interessante. Ele apenas recebeu uma caixa de linguado. Ou, então, outro pescado. Não estou bem lembrado.
O importante é que o cavalheiro esclareceu uma questão grada. Não houve contrapartida para a dourada.
Tratou-se de uma oferta pura e simples. Aceitou o peixe-espada. E mais nada.
Não foi pedida ou prometida nenhuma compensação. O senhor levou só o lingueirão.
Ora receber um atum não é crime nenhum. Foi só pegar no robalo. E, depois, levá-lo.
Só porque obteve uma solha, não merece que lhe façam a folha.
Nada há de mau em querer cozinhar um bacalhau. Uma caixa de cavala não se compara a dinheiro numa mala.
O outro, generoso, deu a enguia, mas nada queria. Não havia manha ou arte só por oferecer um espadarte. Por acaso, é coisa feia dar uma bela lampreia?



MÃOS UNTADAS
Efectivamente, o ponto fundamental é este. Ilegal é receber algo em troca de um favor.
Recordo-me de uma situação passada há uns anos. Trata-se de uma ocorrência verídica, como todas as que aqui relato.
Um alto funcionário público era acusado de ter favorecido um abastado empresário. O mais grave é que o próprio benefício era ilegal. A punição é menos severa quando se recebe dinheiro para efectuar algo a que o particular tem direito.
Neste caso, o funcionário proferira uma declaração que não correspondia à realidade, por forma a ajudar o negociante. De acordo com o que se suspeitava, tinha sido paga uma significativa quantia.
O empresário foi interrogado nas instalações da Polícia Judiciária, onde passou um tempo considerável. Obviamente, negou ter feito qualquer pagamento.
Tinha chegado o momento de dois inspectores desempenharem o papel de polícia bom e polícia mau.
Entrava o mais duro:
- Você está tramado. O funcionário mentiu descaradamente, para beneficiá-lo a si. Ele não fez isso pelos seus lindos olhos. As mãos dele foram bem untadas. O funcionário vai confessar tudo e o Juiz dá-lhe uma pena suspensa. Agora, Você continua a negar tudo. Mas ninguém vai acreditar nas suas tretas. Leva com uma porrada de anos na cadeia. Quando sair da prisão, já os seus filhos são uns homens.
Depois deste, vinha o polícia bom:
- Parece que as coisas não estão famosas para o seu lado. Não vale a pena dizer que o funcionário fez-lhe um favor, sem Você saber de nada. É preferível Você contar o que sabe e ainda é beneficiado com alguma atenuante.



NEM UM CÊNTIMO
O negociante estava atrapalhado.
Então, lembrou-se de uma coisa. Pensava ele que não teria importância nenhuma. E vai de contar:
- Sim, realmente é verdade. Eu pedi ao funcionário para me fazer aquele jeito. Mas não lhe dei nem um tostão. Não houve cá dinheiro envolvido. Ele beneficiou-me muitíssimo com aquele favor. Em troca, eu só lhe dei uma caixa com garrafas de vinho.
Era tudo o que os investigadores queriam ouvir.
Basta oferecer uma vantagem patrimonial qualquer. Um relógio, um quadro, uma viagem, um apartamento a baixo preço: tudo serve para cometer o crime de corrupção.
Este caso consumiu anos, envolto no julgamento e em sucessivos recursos.
No final, o funcionário acabou demitido das suas funções.
O empresário sempre manteve um certo sentimento de culpa, por ter fraquejado, ao declarar uma coisa que ele julgava irrelevante: um singelo presente.
Corroído por este sentimento de culpa, acabou por fazer uma oferta ao ex-funcionário. Desta feita, era mesmo uma dádiva, sem contrapartida. Apenas uma forma de compensar o facto de ter proferido declarações que levaram a um desfecho menos feliz.
O antigo funcionário decidira passar a exercer as funções de consultor, em regime liberal.
Pois o negociante presenteou-o com um bom escritório, integralmente decorado e equipado.