sábado

DE QUE VALE A CONFISSÃO?




















Gerou-se algum debate relativamente à lei de processo, em virtude da absolvição de um indivíduo acusado de matar uma vizinha, em Vila Nova de Gaia.
O arguido tinha confessado o crime perante o juiz que o interrogou, logo após ser preso. No julgamento, optou pelo silêncio e não foi condenado.
O juiz que procede ao julgamento não pode levar em linha de conta a confissão realizada no primeiro interrogatório judicial.



















ISENÇÃO DO JUIZ
Não vou afirmar se este é ou não o sistema ideal. É uma solução adoptada por muitos países. Tem a sua lógica própria.
Ao dar início à audiência, o juiz deve encontrar-se livre de quaisquer opiniões ou preconceitos anteriores. Aprecia as provas que lhe são exibidas ao longo das várias sessões. No final, toma a sua decisão, baseado apenas no que ocorreu durante o julgamento. Em princípio, não podem ser reproduzidas declarações prestadas fora da solenidade própria da sala de audiências.
Quando a polícia procede à detenção de um suspeito, apresenta-o ao juiz, no prazo de 48 horas. Se o magistrado optar por manter o arguido em prisão preventiva, já não poderá julgá-lo posteriormente na eventualidade de o Ministério Público vier efectivamente a acusá-lo da prática de um crime.
A ideia é a seguinte. Aquele juiz tem uma opinião formada sobre a existência de infracção e a respectiva autoria. Não revelaria isenção se fizesse o julgamento.
Durante um ano, trabalhei em Almeirim. Coruche é ali perto. No respectivo tribunal, apenas havia um Juiz. Frequentemente, ele enviava arguidos para a cadeia, em prisão preventiva. Quando chegava a altura do julgamento, esse meu Colega encontrava-se legalmente impedido de efectuar o mesmo. Nesses casos, eu deslocava-me a Coruche e julgava tais arguidos.














INVENTAR NOVAS LEIS
Do meu ponto de vista, não vale a pena lutar quixotescamente contra o sistema jurídico português e propor a invenção de novas leis.
É necessário adaptar o nosso trabalho ao ordenamento legal vigente.
A polícia, o Ministério Público e o Juiz de Instrução Criminal não podem contar apenas com a confissão do arguido. É preciso recolher o máximo de provas, para que posteriormente estas sejam apresentadas no julgamento.

UM DRAMA
Vou dar um exemplo de um caso em que todos se fiaram excessivamente no facto de um assassino ter admitido o crime.
Este homem, de 21 anos, passou uma noite em sua casa, com uma amiga, três anos mais nova. Mantiveram relações sexuais. A dada altura, no decurso de uma zanga, ele apertou-lhe o pescoço, com a intenção de a matar. A bonita jovem ficou inerte e ele transportou-a para uma zona campestre. O assassino abriu uma cova e deitou-a para lá. Aí apercebeu-se de que a vítima se mexera e concluiu que ainda não morrera. Deu-lhe uma pazada para lhe pôr termo à vida.
Entretanto, confessou tudo à polícia. Determinada a prisão preventiva, passou meses na cadeia. Nos primeiros tempos, a namorada visitava-o e estava a seu lado, apesar do bárbaro homicídio.
Porém, os dois namorados desentenderam-se.
O indivíduo contava com uma boa Advogada.
Quando chegaram as férias da Páscoa, estava prestes a chegar o limite temporal da prisão preventiva. Ele teria de ser libertado, caso o Ministério Público não requeresse o julgamento, acusando-o formalmente de praticar o crime. Não era previsível nenhum problema. O arguido tinha declarado ser o responsável.
Surgiu, então, o golpe de teatro. Ele requereu nova inquirição. Dessa vez, confirmou que tinha estado com a amiga. Todavia, acrescentou que a namorada tinha uma chave de casa. Inesperadamente, ela surgira a meio da noite e deparou com os dois na cama. Lançou-se à vítima e estrangulou-a. Portanto, o arguido não a tinha assassinado. Apenas escondera o cadáver.




















INVESTIGAÇÃO E RECOLHA DE PROVAS
Havia imensas pistas que indicavam uma realidade: o homicida só podia ter sido ele.
Era fácil determinar o local e a hora da tentativa de estrangulamento. Não existiam vestígios da presença da namorada no local do crime. Aliás, era possível confirmar que à hora do homicídio, ela encontrava-se noutro sítio. De modo simples, apurava-se que a morte ocorrera por traumatismo provocado no local onde o cadáver foi enterrado.
O diabo é que, ao longo daqueles meses nenhuma investigação fora realizada. Como havia uma confissão, entendeu-se desnecessário gastar tempo com mais diligências.
Agora que o arguido apresentava uma nova versão, tornavam-se necessários exames laboratoriais, que são sempre morosos.
Faltavam poucos dias para a sua libertação. Somente se fosse deduzida acusação, ele poderia continuar preso.
Como disse, estava-se no período de férias de Páscoa. Eu era o Juiz de turno numa vasta área geográfica e coube-me decidir o que fazer naquele processo, com o qual nunca tinha contactado antes.
A solução que encontrei foi a seguinte. De um modo talvez um pouco forçado, declarei que era um processo de especial complexidade. Assim, prorroguei a prisão preventiva do arguido e conferi mais algum tempo ao Ministério Público, para que as provas fossem recolhidas e o indivíduo acusado do crime de homicídio.
Fica uma lição.
Nunca se deve fiar demasiado na confissão. É indispensável recolher todos os outros elementos de prova, mesmo que o arguido tenha admitido a prática do crime.