Em 1971, o maestro António Victorino d´Almeida apresentava diariamente um programa na Rádio Rensacença, dedicado à música clássica.
Certa vez, foi abordado por Manuel Joaquim, conhecido rato de automóveis, com longo cadastro no que respeitava a roubar carros. Era uma actividade a que se dedicava desde os 14 anos.Tinha acabado de cumprir pena e apresentou-se ao músico com um radical dilema:
- Ou o Senhor Maestro me ajuda a tornar-me pianista ou então eu continuarei como ladrão de viaturas.
O velho marginal explicou o que se passara. Descobrira que, na cadeia havia um antigo piano vertical, algo desafinado. Sem nunca ter tocado qualquer instrumento musical, começou sozinho a dedilhar as teclas. Nos últimos quatro meses, tinha aprendido, por si, a tocar inúmeras composições dos clássicos.
Ainda não sabia ler a pauta. Tocava de ouvido, graças a um gira-discos disponibilizado por outro prisioneiro.
Maestro e gatuno em vias de regeneração deslocaram-se para o estúdio, onde se encontrava o piano de cauda.
O aspirante a pianista propunha-se tocar a Apassionata.
Victorino d´Almeida quis dissuadi-lo:
- Se Você começou a tocar piano há 4 meses, não pode executar uma peça de semelhante ordem.
Manuel Joaquim insistiu e lá tocou a obra de Beethoven, com evidentes falhas e sempre de um modo primitivo.
Contudo, ele evidenciava reais potencialidades. Tinha mesmo talento.
UMA PROFESSORA DE EXCELÊNCIA
Determinado a auxiliá-lo, o autor do programa radiofónico delineou um plano.
Seria nem mais nem menos que Olga Prats a ministrar-lhe as aulas. A pianista acedeu à ideia do seu colega e amigo. De imediato, iniciaram-se as lições, de modo ainda provisório.
Depois, era necessário obter uma bolsa de estudo, que permitisse a Manuel Joaquim suportar as despesas de uma vida dedicada ao estudo musical.
O caso foi exposto à Fundação Gulbenkian. Todavia, a entidade demorava a estudar o pedido.
Meia Lisboa já conhecia a história do ladrão-pianista e um produtor televisivo abordou Manuel Joaquim.
Propunha-se fazer um programa de puxar à lágrima fácil.
Seria tudo filmado na cadeia. O antigo presidiário sentar-se-ia ao piano, tocando o primeiro andamento da Sonata ao Luar.
O profissional da TV aliciou o Manuel com um bom cachet. Acenou-lhe com a possibilidade de se gerar uma onda de solidariedade entre os telespectadores. E ainda lhe disse que, provavelmente, a Gulbenkian ver-se-ia pressionada a dar uma resposta ao pedido de apoio.
Quando o ex-recluso expôs a situação ao maestro, este foi peremptório:
- Você não toca nada, nem ao luar, nem ao vento, nem à chuva!
Na opinião do músico, ele seria prejudicado, ao expor-se daquela forma, mostrando a todos que ainda procurava as notas e as teclas, de um modo incipiente.
Sob o pretexto de carecer do dinheiro, Manuel Joaquim não fez caso. Lá apareceu na televisão, em frente ao piano, de trás para a frente, em busca dos sons.
Tal determinou o fim da sua carreira musical.
O programa foi muito comentado. Da Fundação da Avenida de Berna veio, finalmente, a decisão. Recusavam conceder um subsídio de protecção a um indivíduo que actuava publicamente, de modo amador.
Passados uns meses, a polícia encetou uma louca perseguição a um carro roubado, que seguia a toda a velocidade pelo Estoril e pelo Guincho. Somente em Sintra conseguiram proceder à imobilização do automóvel.
Ao volante, estava o famoso Manuel Joaquim, que, desta forma, regressou à prisão.
Este curioso episódio é relatado pelo próprio Victorino d´Almeida na sua autobiografia, com o inspirador título “Ao princípio era eu”.