Em princípio, toda a lei carateriza-se pela
generalidade e abstração. Assume natureza geral, porque se aplica a um número
indeterminado de pessoas. É abstrata, dado que não visa determinados casos
concretos.
Nem sempre é assim. Há leis que são feitas para certas
pessoas e determinados casos.
Uma das situações mais conhecidas e criticadas por
juristas de todos os quadrantes consistiu no Decreto Raquel, nome pelo qual
ficou conhecido o decreto-lei nº 1/71, de 6 de janeiro de 1971, assinado por
Marcello Caetano e Américo Tomás.
O que aconteceu foi o seguinte.
No Verão de 1970, Cupertino de Miranda almoçou em Paris, no Hotel
Ritz, com o industrial António Champalimaud. Este comprou ao banqueiro
150 mil ações do Banco Português do Atlântico. Ficou combinado que o negócio
seria secreto até se realizar a assembleia geral da instituição.
Entretanto, a transação foi conhecida ainda antes
daquela reunião magna. Alguns empréstimos pedidos pela Siderurgia Nacional
tinham sido recusados pelo BPA. O empresário do aço deu a conhecer a sua
dimensão de acionista.
ARREPENDIMENTO
Convencido por alguns administradores, Cupertino de
Miranda arrependeu-se da venda realizada na capital francesa. E fez tudo para
que o contrato fosse anulado.
O mundo é pequeno e ocorria uma curiosa circunstância.
João Dias Rosas, ministro das Finanças, mantinha um caso amoroso com Raquel
Serra, que se tinha divorciado do banqueiro Mário Quina. Por seu lado, Artur
Cupertino de Miranda andava envolvido com a mãe de Raquel.
De modo que o fundador do BPA abordou a matéria com a
senhora nos braços de quem perdia a compostura. Ela terá pedido à filha que tratasse
do assunto com o ministro. Assim, a lei que desfez aquela venda de ações ganhou
a designação de Decreto Raquel.
Em boa verdade, João Dias Rosas inteirou-se do tema.
Pediu a Jorge Jardim que viajasse ao México e esclarecesse com Champalimaud os
contornos do negócio. Mas o ministro não chegou a tomar nenhuma atitude. Não
quis interferir precisamente devido ao seu relacionamento com Raquel Serra. Daria
sinais de parcialidade.
Foi o próprio presidente do conselho que resolveu a
questão, conforme desejado por Cupertino. Marcello Caetano aprovou o diploma que
cancelava a venda da participação social, com efeitos retroativos.
Salgado Zenha chamou-lhe lei de “locupertinamento” à custa alheia. Adriano Moreira diz que o “decreto representa uma pedra negra na vida
portuguesa”.
O imbróglio deu origem ao “Fado das Cem Mil”. Obviamente, não retrata com exatidão o que se
passou: “Vendi as minhas ações ao sacana
do António, Vem Raquel apressada das lides de concubina, O meu Rosas é
ministro, só por mim ele quebra lanças”.