Aparentemente, em Portugal, as ordens profissionais não
seriam muito compatíveis com o regime democrático. Há quem lhes aponte
resquícios do corporativismo. É obrigatório inscrever-se na associação para
exercer a respetiva atividade profissional. Existem mecanismos de
auto-regulação, como o poder disciplinar contra os alegados infratores, que são
julgados pelos seus pares.
A verdade é que, na medicina e na advocacia, em todo o
mundo, foram criadas entidades deste tipo, sem que alguma vez o Estado tenha
assumido caráter corporativo.
De resto, no nosso país, a proliferação das ordens deu-se
após a revolução de 1974.
ANTÓNIO VICTORINO D´ALMEIDA
Por outro lado, durante o Estado Novo, as duas ordens
profissionais existentes sempre se assumiram como baluarte de defesa contra a
arbitrariedade da ditadura.
Quase todos os médicos recusaram prestar serviços à
PIDE-DGS. Foram poucos os clínicos que aceitaram observar os presos durante as
sessões de tortura.
Ao longo da história da polícia política, apenas 8
médicos foram contratados para os respetivos quadros. No total, não terão sido
mais do que 15 os profissionais que se disponibilizaram para uma tal colaboração,
ainda que esporádica. Mesmo assim, alguns deles foram expulsos da Ordem, por
esse motivo.
A Ordem dos Advogados terá desempenhado um papel ainda
mais relevante, como é natural.
Em 1968, o subdiretor da PIDE, José Sachetti,
participou contra o advogado Joaquim Monteiro Matias, que se encontrava preso
após ter defendido vários réus em processos nos tribunais plenários.
Recebida a queixa na Ordem, António Victorino d´Almeida
foi nomeado instrutor do processo disciplinar. Tratava-se do pai do famoso maestro
e compositor, com o mesmo nome. Era advogado com escritório na Rua do
Crucifixo, em Lisboa.
ABUSO DE PODER
O ofício era comprometedor e imputava a Monteiro Matias
abuso de poder no exercício da profissão. Ele teria sido portador de propaganda
entregue clandestinamente a presos políticos. Ainda havia colaborado na
tentativa de fuga de um recluso. Os factos tinham sido confessados pelo
próprio, nas instalações da polícia. Esses autos serviram, posteriormente, à
sua condenação pelo Tribunal Plenário.
António Victorino d´Almeida e outros cinco advogados decidiram
unanimemente, em plena consciência e sem constrangimentos. Sabiam perfeitamente
que Matias fora coagido a confessar. Estavam cientes de que ele fora condenado
pelo ignóbil António Almeida Moura, um juiz sem escrúpulos e altamente
desonesto. Aceitava todas as confissões extraídas na PIDE, embora conhecesse as
práticas de tortura.
Como escreveu o relator, "a sentença criminal considera a existência de fatos que também são
objeto da acusação disciplinar", mas "importa que eles se provem neste processo disciplinar, com inteira
independência".
Ora perante a Ordem, nada daquilo ficou provado.
Portanto, Joaquim Monteiro Matias foi ilibado. Retomou o exercício da
advocacia, quando foi restituído à liberdade.
Estes aspetos são recordados num livro da autoria do
corajoso advogado: "Memória de
Tortura e Resistência". O prefácio é de Irene Flunser Pimentel, que
alude à intervenção da Ordem dos Médicos, no que toca aos clínicos que
colaboraram com a PIDE.