segunda-feira

SER E DEVER SER



Uma amiga perguntou-me se, legalmente, existe a obrigação de um doente contaminado com ébola ficar sujeito a internamento, por forma a não cometer o crime de propagação de doença.
A resposta implica duas observações.
Todos consideramos essencial essa responsabilidade. Quem padece do terrível vírus não pode ser egoísta e pensar só em si. O isolamento é imprescindível para proteção da sociedade.
Em termos de Direito, tal imposição não está consagrada na ordem jurídica nacional.
Ou seja, deveria haver uma obrigação desse tipo. Mas não está prevista na lei, por enquanto.



TRAGÉDIA

Não pode haver privação da liberdade, quando se estima que determinado indivíduo é um potencial criminoso.
Certa vez, Manuel Pedro Ramalho Dias, o temível Manel Alentejano, declarou, em entrevista à imprensa:
- Pretendo morrer da seguinte forma. Vou para um local público, armado, de pistola. Mato uma dúzia de pessoas. Depois, disparo sobre a minha cabeça.
Antes de por termo à vida, ele desejava gritar: “Vão todos levar no…”.
Era ameaça para levar a sério. Tratava-se de um perigosíssimo assaltante. Assassinava por capricho ou para concretizar roubos de tuta e meia, embora reconhecesse:
- Quando mato alguém, fico um bocado deprimido.
Aquele assustador anúncio não permitiria aplicar-lhe uma medida de segurança e trancá-lo a sete chaves, para evitar a tragédia que ele prometia levar a cabo.
As medidas de segurança permitem arrecadar sujeitos perigosos. Mas só após terem cometido um delito.


ESTADO DE NECESSIDADE?

Nas situações do vírus do ébola, não se pode falar em direito de necessidade. Falta a atualidade do perigo, que apenas se verificará em casos extremos de pessoas comprovadamente contagiadas e que se ausentam de casa livremente.
Entretanto, importa esclarecer que o paciente não pratica um crime quando mente relativamente ao seu estado de saúde. Nega ter sido atingido pelo ébola, sabendo que, na realidade, foi infetado.
Não lhe é imputável a falsificação nem se lhe podem assacar falsas declarações.
Isso acontece quando o embuste respeita a facto juridicamente relevante ou a circunstância com efeitos jurídicos. Por exemplo, alguém afirma que é solteiro, quando, na realidade, é casado. Ou comunica ser herdeiro único, conhecendo a existência de mais sucessores.
Por outro lado, o isolamento é indispensável também quanto a indivíduos suspeitos de serem vítimas do ébola. Têm de ser internados, mesmo contra a sua vontade, apenas por prevenção e para efeitos de diagnóstico.


À MARGEM DA LEI

Deste modo, a única hipótese é mesmo aprovar uma lei para o efeito.
Portugal é um Estado de Direito.
Quando as autoridades públicas atuam à margem da lei, verificam-se dois inconvenientes.
Sai reforçada a imagem do nosso país como nação pouco desenvolvida.
Por outro lado, mais tarde ou mais cedo, a ilegalidade é denunciada e tem de se por cobro à mesma.
Darei alguns exemplos em que situações dessas trouxeram dissabores.
Enquanto procurador-geral da república, Cunha Rodrigues teve a louvável iniciativa de criar os departamentos de investigação e ação penal. Porém, estes organismos começaram a funcionar, antes de serem constituídos legalmente.
É claro que vários advogados suscitaram a irregularidade. Centenas de provas ficaram inutilizadas.
Em Macau, no período compreendido entre 1976 e 1996, realizavam-se votações para o presidente português. Os boletins eram contados e enviados para Portugal. Depois, pura e simplesmente, procedia-se à sua destruição e não se contabilizavam para as eleições do chefe-de-estado.
É que os juristas alertaram para o facto de aquela cidade não estar integrada no território português.
Em Barrancos, causídicos acabaram com as touradas em que se matavam animais durante o espetáculo. Através de procedimentos cautelares, forçaram as entidades locais a não permitir a ilegalidade. Posteriormente, lá apareceu legislação, consentindo aquilo que alguns consideram um grande divertimento.
Com o ébola, não pode suceder o mesmo.
Não é viável esperar que surjam os problemas para se pensar em legislar sobre o assunto.