quinta-feira

O TRIBUNAL DE SOARES



Querido Fernando,
A Isabelinha teve um acidente de automóvel gravíssimo, perto de Palencia, quando vinha ter comigo a Paris. Está a recuperar muito bem. Regressou a Lisboa em automaca, como medida de prudência e a conselho do médico espanhol.
O José Ervedosa fez a sugestão de se organizar uma espécie de Tribunal Russell. Nós estamos inteiramente de acordo. Para pôr de pé uma tal ideia é preciso muito dinheiro e muitos apoios.
Um abraço à Stella e outro para ti do velho Amigo
Mário.

São excertos de uma carta escrita nove meses antes da revolução de 1974. Foi enviada pelo secretário-geral do Partido Socialista a Fernando Piteira Santos. Está reproduzida integralmente no livro que acaba de ser lançado: “Cartas e Intervenções Políticas no Exílio”.
Com 22 anos, a filha do político fora vítima de um sério desastre. De imediato, o pai viajou para o hospital, chegando ao mesmo tempo que sua mulher, ida de Lisboa, em conjunto com João, o descendente mais velho. Década e meia mais tarde, este viria a ser hospitalizado, em coma, como consequência da queda do avião em que seguia.


TRIBUNAL RUSSELL

Na missiva, após mencionar o sinistro que tanto preocupou a família, Mário Soares desenvolve pormenorizadamente o escândalo internacional decorrente dos massacres em Moçambique. Tropas portuguesas atacaram populações civis indefesas, com recurso a armas químicas.
José Ervedosa, major da Força Aérea, vivia na Argélia, após ter lançado napalm em zonas desertas, desrespeitando uma ordem para chacinar africanos. Publicara um importante artigo numa revista francesa.
Efetivamente, o oficial aventara a hipótese de se constituir um tribunal internacional.
O projeto seria semelhante ao que teve lugar na Suécia e na Dinamarca, por iniciativa de Bertrand Russell e Jean-Paul Sartre. Teve como finalidade apreciar a intervenção norte-americana no Vietname.
Pouco depois, ocorreria o golpe dos capitães de abril e a iniciativa dos portugueses não se concretizou.
Em agosto passado, em Veneza, o Tribunal Russell foi reeditado, tendo em vista julgar crimes praticados no Donbass, região da Ucrânia.