A temática da justiça está presente em todas as obras
de Shakespeare.
O académico britânico Quentin Skinner tem proferido
algumas palestras em que analisa a matéria. Aborda até os traços de
investigações forenses na vasta obra do escritor, que viveu numa época em que tal
domínio não atingira o estatuto de ciência. Essencialmente, versa a arte da
argumentação, nas peças daquele autor.
Na área judicial, a obra paradigmática do dramaturgo é
o Mercador de Veneza.
Em certa medida, na cidade dos canais, faz-se justiça.
Porém, a trama é politicamente incorreta. O agiota usurário é um ganancioso
judeu. Fica sem o seu dinheiro. Mas acima de tudo, o prestamista é forçado a
converter-se ao cristianismo.
Tudo se passa em pleno tribunal, perante o Duque de
Veneza, magistrado a quem compete dirimir o litígio.
LIBRA DE CARNE
Shylock emprestara uma avultada quantia a António, que
estava ansioso por financiar a viagem de um amigo a Belmonte. Segundo o
contrato, caso o devedor não procedesse ao reembolso na data aprazada, o
mutuante teria o direito de retirar ao caloteiro um bom naco da sua própria
carne.
Como o montante não fora devolvido atempadamente,
António é processado judicialmente. Embora com atraso, o seu amigo Bassânio,
regressado da viagem, disponibiliza-se a pagar o que for preciso.
O penhorista recusa uma proposta interessante: o dobro
do dinheiro que facultara. Shylock quer mesmo que o acordo seja rigorosamente
observado. Terá direito a extrair uma libra de carne ao faltoso.
O magistrado sente dificuldade em recusar aquela
pretensão. Na sua mente apenas lhe surge o princípio de que os contratos devem
ser cumpridos: pacta sunt servanda.
Eis que surge um advogado nada conhecido, mas que se
destaca pelo seu brilhantismo.
O causídico elucida que o capitalista poderá extirpar
um pedaço de carne do réu. Mas não lhe assiste a possibilidade de retirar
sangue a António. De modo que se torna inviável pegar numa faca e arrancar uma
libra de carne. Tal implicaria a hemorragia, que não estava prevista na
negociação.
Na realidade, o jurista é Pórcia disfarçada, a mulher
de Bassânio, que enverga indumentária de homem.
O juiz aceita a validade daquele argumento. Nega a
libra de carne. António é mandado em paz.