quinta-feira

UM INOCENTE NA CADEIA E UMA AUTÓPSIA



Vale a pena ler a biografia de Margarida Marante, da autoria de Maria João Martins.
Como diz um dos filhos da brilhante jornalista, trata-se de uma obra pequena, mas rigorosa.
Apresenta um conjunto de imagens fotográficas de grande interesse.
O livro omite muitos aspetos, como é inevitável pela sua dimensão.
Não refere o azedume dos textos escritos pela também advogada, quando se entregou à crítica televisiva. Foi particularmente desagradável para quem se tinha juntado à SIC, após ela deixar a estação televisiva. Herman José foi um dos alvos dessa aspereza.
Falta também a menção ao facto de a biografada ser uma ativa participante em fóruns da Internet, designadamente no grupo “Se a Justiça Falasse…” do Facebook.


MALDITA

Parece-me aceitável aludir-se ao consumo de cocaína, algo que ocorreu apenas num curto período de sua vida. E, infelizmente, que lhe levou a vida.
Hoje em dia, é raro alguém morrer de overdose, como acontecia frequentemente com quem injetava heroína nas veias.
Mas continuam a ser frequentes as síncopes cardíacas fatais, após a inspiração do pó branco que ganhou o adjetivo de maldito.
A droga passou a ser maldita com a letra de Fernando Santos para uma melodia composta por Almeida Amaral e Jorge Cruz Sousa, em 1929.
Seis décadas passadas, Filipe La Féria estreou uma peça, que se tornou um enorme êxito. O leitmotiv mantinha-se. Continuava a versar sobre a Lisboa da década de 20 e o vício imposto pela traiçoeira companheira de que fala a canção.


VERDADEIRO E PERFEITO ANORMAL

Em 1928, um inocente foi parar à cadeia por causa de uma confusão armada com um enfarte provocado pela inalação daquele estupefaciente.
Rosa Catatau, mulher solteira de família abastada, com hábitos muito liberais, perdeu a vida antes de completar 30 anos.
O “Diário de Notícias” referiu-se a ela como pessoa “sempre ansiosa dos mais estranhos prazeres, gostava que o amante lhe batesse, cocainómana, verdadeiramente anormal”. Estávamos perante um jornalista que era um autêntico Gato Fedorento avant la lettre, muito anterior à fabulosa criação do Perfeito Anormal pelos humoristas.


RESTAURAÇÃO

Segundo constava, a elegante menina sentiu-se mal após ter jantado em casa, onde faleceu. Levantou-se da mesa e meteu-se logo na banheira. Ali se ficou.
Uma carta chegou à Policia.
Hermínia Pinto garantia que tal era impossível.
De certeza que a finada não havia tomado a sua última refeição na residência.
Pois se a autora da missiva estivera com Rosa. Mais precisamente, alimentando-se num luxuoso restaurante dos Restauradores, restaurando as forças perdidas com a digestão do almoço.
Enquanto jantavam na Abadia, o chauffeur de Rosa aguardava as duas.
Após o repasto, apanharam Adérito Augusto Sousa, namorado da endinheirada socialite.
Hermínia deixou-os quando o automóvel chegou à sua porta.
Mas sabia perfeitamente para onde o casal se dirigira.
Com certeza, Rosa e Adérito deslocaram-se à Rua Gomes Freire, onde atualmente se localiza a sede da polícia judiciária.
Aí, entraram num prédio peculiar. Uma senhora alugava compartimentos destinados a entrevistas, eufemismo suficientemente abrangente para incluir encontros de toda a espécie.
O que tinham feito, a amiga da defunta ignorava. Apenas podia estimar que houvesse sexo e drogas. Rock’n’Roll era algo de inexistente, numa época em que o jazz e o foxtrot imperavam.
O certo é que o homem era agressivo. Rosa Catatau já tinha confidenciado que ele a espancara mais do que uma vez. Tanto que, em certa ocasião, ela fora parar ao hospital, com um braço partido.




ATAQUE

Na sequência da comunicação, as autoridades encerraram Adérito nos calabouços da Boa-Hora.
Esperavam que uma autópsia trouxesse luz. Tornou-se necessário proceder à exumação, visto que o funeral tivera já lugar no cemitério dos Prazeres.
E, realmente, aquele exame médico foi esclarecedor.
Uma fulminante paragem cardíaca determinara a morte.
O pó de maldição, mas cujo poder fascina, no dizer do tal letrista Fernando Santos, tem consequências clinicamente conhecidas. A tensão arterial aumenta. É maior a frequência da pulsação. De um momento para o outro, o coração falha.
Afinal, não tinha sido nenhum ataque de fúria do galã, mas antes um ataque do órgão que bombeia o sangue em direção ao cérebro.


CASACO DE PELES

Então, o que explicava a versão inicialmente posta a circular?
Helena Matos já o relatara na obra “Salazar, A Construção do Mito”. Recordou-o depois num programa radiofónico.
D. Ester, a tal mulher que cedia quartos para conferências íntimas, não queria problemas. O menos que desejava era ter de justificar o aparecimento de um cadáver no seu imóvel.
Por outro lado, os parentes de Rosa pretendiam esconder o hábito de consumo do alcaloide e o encontro privado num local daqueles.
O corpo foi levado para o domicílio, envolto num casaco de peles.
A irmã da desinfeliz chamou o médico. Mas cometeu o erro de dizer que toda a família estivera à mesa, jantando na companhia da fenecida, antes da sua indisposição.
Algo que Hermínia desmentiu, estimulando a intervenção policial.