Eu não tenho interesse nenhum no caso.
Tudo aconteceu na Polvoreira, pequena localidade do
concelho de Guimarães. Nos dias 26 e 27 de fevereiro de 2010, ocorreu um
valente temporal.
Em todo o município registou-se a queda de 25 árvores.
A Proteção Civil emitiu alerta laranja. Para a
população em geral, isso implicou a recomendação de medidas de prevenção e
precaução relativamente à condução, sobretudo em vias propensas à formação de
lençóis de água.
No segundo dia, as autoridades aconselharam mesmo que
os habitantes da zona litoral norte e centro evitassem sair de casa. Tenha-se
em consideração que 27 foi um sábado, dia em que a maioria das pessoas não
trabalha.
Em todo o caso, dificilmente se poderia considerar que
aquela povoação se integra no litoral.
RAJADAS
Acontece que por ali circulava, a baixa velocidade, um Alfa Romeo conduzido por um amigo de Hogla Luci Fernandes Pereira, que seguia a seu lado.
A estrada era sinuosa e, logo
após uma curva, o veículo embateu contra um grande pinheiro horizontalizado
sobre a via. Com 60 a 70 anos de idade, a árvore ocupava transversalmente toda
a faixa de rodagem. O tronco até gozava de saúde, mas não resistiu a ventos com
rajadas da ordem dos 100 km/h.
A psicóloga, então
com 27 anos, ficou gravemente ferida. Na perna direita, apresentava
fratura exposta. Sofreu quatro intervenções cirúrgicas e nunca mais foi a
mesma.
PINHEIRO
O automóvel encontrava-se segurado pela companhia
Tranquilidade. O pinheiro derrubado pertencia a uma propriedade de um casal de
apelido Abreu.
A meu ver, a lesada fez uma correta leitura jurídica da
situação.
Eram duas as hipóteses.
A responsabilidade do acidente dever-se-ia ao involuntário
abate da árvore, caso em que os donos da mesma deveriam indemnizar a
desinfeliz.
Ou, então, a culpa era do condutor e a seguradora
assumiria o dever de pagar a compensação.
O que certamente não esperaria era que o Supremo
Tribunal de Justiça viesse a considerar que ela própria também contribuíra para
a verificação do acidente, numa medida que ficou estabelecida em 15%. Se havia
sido lançado o aviso alaranjado, todos tinham a obrigação de estar atentos às
recomendações da proteção civil. E as mesmas foram amplamente divulgadas.
Em rigor, quem se lembrou dessa proporção de uma
quinzena sobre cem foram os juízes da Relação de Guimarães. Depois, quando os
proprietários da árvore recorreram para o Supremo, a psicóloga nem sequer
questionou tal entendimento.
ROBUSTO
O Tribunal de última instância deu razão aos Abreus. O
pinheiro era vetusto e atingira 26 metros de altura. No entanto, o seu porte
era ereto, sem inclinação. Não apresentava nenhuns sinais de apodrecimento.
O casal ficou ilibado.
Restava examinar o seguro do carro.
O facto de a jovem senhora estar num veículo já
permitiria invocar a responsabilidade pelo risco, hipótese que nem foi
considerada judicialmente. A indemnização impunha-se por força do nº 1 do
artigo 503º do código civil.
Contudo, a questão foi encarada em termos de
negligência.
Sabendo ou devendo inteirar-se das condições
meteorológicas, o amigo de Hogla
meteu-se à estrada e até não ia com grande rapidez. Não é frequente haver
obstáculos na via, mas os automobilistas têm de estar preparados para tal
eventualidade.
Assim, o homem foi dado como
culpado do desastre, mas apenas em 85%. O restante coube à própria vítima, que
decidiu ir viajar apesar do mau tempo.
Em termos práticos, a
Tranquilidade foi condenada a pagar-lhe apenas € 48 293,86. É o montante
indemnizatório, após a dedução dos tais 15%.
É estranho afirmar que a
passageira concorreu para a produção do sinistro.
Se eu me inscrever numa
excursão e embarcar no autocarro, sei que poderá ocorrer um desastre.
Porém, não conto que, após
uma desgraça, venham alegar que eu não teria sofrido ferimentos caso tivesse
ficado em casa. Nalguma percentagem, eu próprio seria responsável pelos danos
que sofri. Nada daquilo teria acontecido se eu não me arriscasse a viajar.
De tal coisa é que ninguém
está à espera.
Já fiz percursos que comportavam
algum perigo. Todavia, é para isso mesmo que existem apólices de seguro. Não me
venham depois dizer que eu é que me meti em problemas e, por isso, fui vítima
de mim próprio.
CÓDIGO
Trata-se de uma visão contrária
à lei.
Todo o veículo tem um condutor que se deve abster da
prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da
condução com segurança, sendo sua a responsabilidade pelo cometimento de
infrações. Incumbe-lhe proceder ao transporte de viajantes de modo que não
comprometa a segurança deles ou a segurança da condução.
No fundo, o código da estrada limita-se a consagrar
aquilo que resulta de todas as outras perspetivas possíveis.
ÉTICA, MORAL E CORTESIA
As regras de convivência em sociedade vão no sentido de
que os passageiros se devem abster de imiscuir-se na condução, devendo
entregar-se nas mãos de quem guia a viatura.
O bom senso impede que se alargue a responsabilidade
aos outros ocupantes da viatura.
Certos acompanhantes nada sabem sobre a forma de
dirigir um veículo e nenhuns conhecimentos adquiriram quanto às regras de
circulação rodoviária. Outros poderão estar, com toda a legitimidade,
distraídos com qualquer ocupação ou a dormir. Alguns, como as crianças mais
novas ou adultos com limitações, nem têm capacidades cognitivas que lhes
permitam compreender o que se passa enquanto são transportados.
Do ponto de vista ético, os meios de transporte, nas
vias romanas percorridas mediante tração animal, nos mares sulcados pelos
bravos navegadores, nas vias férreas em que assentavam as velhas locomotivas a
vapor e nos céus rasgados pelas aeronaves dos gloriosos heróis da aviação,
sempre obedeceram aos princípios de que quem viaja se submete à orientação daquele
que comanda o veículo, sendo as interferências severamente reprimidas.
Moralmente, as estradas construídas com o advento do
automobilismo impuseram a doutrina de que o volante é agarrado pelo condutor, a
quem compete tomar as decisões, sem que os acompanhantes estejam obrigados a
dar o seu parecer sobre o modo como decorre a jornada.
A cortesia e a boa educação determinam que aos
passageiros não cabe formular sugestões, devendo omitir insinuações que
desautorizem quem assume a função de motorista.
Pode haver muitos fatores que contribuem para a
verificação de um acidente rodoviário. Mas nunca cabe o mínimo de culpa aos
passageiros.