Na pasta da Saúde, a pessoa que deixou uma marca mais
profunda foi Leonor Beleza.
Após ela cessar funções, teve uma atitude de grande
humildade e inscreveu-se no segundo estágio de 1990, na Ordem dos Advogados,
onde tive o prazer de a conhecer. Também eu começava o tirocínio, tendo como
patrono Guilherme da Palma Carlos.
A mulher de leis deixara um importantíssimo legado. A
mortalidade infantil era das mais elevadas do mundo e foi reduzida
drasticamente. A brusca melhoria dos cuidados pediátricos salvou muitas existências e
trouxe grande qualidade de vida a milhares de crianças, que, de outra forma,
teriam uma infância de dificuldades.
Não por acaso, quando António Champalimaud resolveu destinar
grande parte da sua fortuna ao desenvolvimento da medicina, elegeu aquela
jurista para administrar a respetiva fundação.
Portugal está entre os quinze países onde menos
crianças sucumbem nos primeiros cinco anos de vida. Com resultados ainda
melhores do que França, Inglaterra ou Austrália.
Tudo começou da seguinte forma.
Leonor Beleza rodeou-se dos melhores especialistas,
sabendo que a respetiva filiação partidária não era igual à sua,
situando-se mesmo na oposição de esquerda. Conferiu-lhes uma missão e
concretizou tudo o que lhe apontaram como essencial para atingir o objetivo que
viria a ser alcançado.
PENA SUSPENSA
A iniciativa foi espoletada por um eterno inconformado:
Octávio Cunha.
O conceituado pediatra tinha sido deputado da União da
Esquerda para a Democracia Socialista, coligada com o PS. Detestava o governo liderado
por Cavaco Silva. Não simpatizava com a política do executivo e aborrecia-se
com o sucesso obtido. Um êxito de tal ordem que até Costa Gomes disse que
gostava de ter tido um primeiro-ministro daqueles, quando foi Chefe de Estado.
Ora o clínico albergariense envolvera-se na política
logo como estudante, em Coimbra, chegando a presidente da Associação Académica.
Em 1965, foi condenado no Tribunal de Almeida a dois
anos de prisão suspensa, por não ter regressado no dia previsto aquando de uma
deslocação a Paris, juntamente com colegas universitários.
Pouco depois, instauraram-lhe um processo disciplinar
por não acatar a ordem de encerrar as mais importantes secções da agremiação
estudantil.
Mota Pinto, que viria a ser primeiro-ministro em
democracia, assumiu a defesa do líder académico. Inteligentemente, o jurista
citou o próprio Salazar, recorrendo a palavras escritas pelo ditador, 46 anos
antes, quando se viu suspenso da docência no decurso da I República: “Liberdade de opinião reina nas aulas.
Termino em geral as minhas preleções por uma frase quase sacramental: É esta a
minha opinião”.
Nem aquela apologia da
liberdade de expressão pelo presidente do conselho permitiu ao discente escapar
a uma suspensão e, depois, à pena de morte académica: expulsão de todas as
universidades portuguesas.
Terminou o curso na Suíça,
de onde só regressou em 1974.
SANTO ANTÓNIO
No auge do cavaquismo, os portugueses andavam
encantados com os progressos económicos.
Porém, Octávio Cunha continuava a ver imensas crianças afetadas
por paralisia cerebral e outras a baixarem ao hospital em condições
lastimáveis, deixando poucas hipóteses de cura definitiva.
O perito em doenças infantis, atualmente a desempenhar
funções na CUF, apanhou Leonor Beleza em visita oficial ao seu local de
trabalho de então, o Hospital de Santo António, no Porto. Deu-lhe conta do
desânimo que sentia nos cuidados intensivos neonatais e do que se poderia fazer
para inverter aquela situação.
Na manhã seguinte, a governante ligou ao profissional
de saúde e solicitou-lhe que se encontrassem os dois em Lisboa.
Na capital, pediu-lhe:
- Reúna três grandes obstetras e três excelentes
pediatras, de norte a sul. Tragam-me as soluções.
Coerente, o médico não se converteu aos ideais do PSD.
Para acompanhá-lo no projeto, propôs os colegas mais competentes que conhecia,
todos eles colocados politicamente fora da direita, por tal sinal mais à
esquerda do que a área socialista de onde ele provinha.
A exceção era Albino Aroso, que ficou a coordenar o
grupo de trabalho e conferia numero ímpar à equipa. O vilacondense, realmente,
pertencia ao partido social-democrata.
Assim surgiu a Comissão da Saúde Materna e Neonatal,
cujas propostas foram imediatamente acolhidas pela ministra, colocando Portugal
em lugar cimeiro nos cuidados prestados a bebés.