domingo

SUSTO



É um maravilhoso busto. Mas causou um problema que assumiu proporções de tragédia.
O respetivo escultor andava de cabeça perdida e levou a cabo uma proeza até então inédita.
Já não com a cabeça da pessoa retratada, mas com a sua própria cachola.
O estatuário foi a primeira pessoa no mundo inteiro que conseguiu disparar dois tiros sobre o seu próprio crânio.
Sobreviveu à primeira bala e premiu de novo o gatilho, alojando a munição mortal.
São episódios raríssimos que justificam alguns artigos forenses sob a temática de “multiple gunshot suicides”.
Yuriy Kravchenko, antigo ministro ucraniano, morreu desta forma, mas há sérias dúvidas sobre a circunstância de se tratar efetivamente de um suicídio. A mesma controvérsia surgiu a propósito do jornalista norte-americano Gary Webb, que investigara atividades da CIA.




BUSTO

O caso do busto passou-se no Porto, no final do século XIX.
Um famoso produtor de vinho organizou um jantar em sua casa. Nicolau de Almeida, antepassado do homem que veio a criar o célebre Barca Velha, convidou uma série de amigos, entre os quais Soares dos Reis, prestigiado artista plástico que acabara de entrar nos quarenta.
Elisa Leech, uma distinta senhora inglesa de 66 anos, encontrava-se a passar uma temporada na Invicta. Viera de Berlim, onde seu filho desempenhava as funções de embaixador do Reino Unido.
O anfitrião resolveu inclui-la no rol de convivas.
Elisa aproveitou o facto de travar conhecimento com Soares dos Reis para lhe fazer uma encomenda. Pretendia um busto da sua própria pessoa, com que ornamentaria a casa de Cheshire. O preço ficou logo acordado.
Finalizada a obra, a britânica compareceu no atelier. Observou o trabalho sem fazer comentários. Pagou as 100 libras ao mestre cinzelador e despediu-se.
As semanas passaram e ela não mandou levantar o busto. Tendo regressado a casa, ficou claro que não apreciara o retrato em mármore. Aliás, constava já que a própria não se reconhecia naquela peça, de que existe também um exemplar em bronze.
É uma produção lindíssima, que efetivamente parece demonstrar que o autor iniciara uma nova fase em que se afastava do naturalismo, explicando alguma infidelidade relativamente à verdadeira fisionomia da pessoa que espelhava. A parte inferior é arredondada, assentando num pequeno plinto.
A atitude de Elisa Leech magoou tanto o escultor portuense que ele decidiu pôr termo à vida. O profundo desgosto, por sentir que o busto não agradara à interessada, determinou a sua morte aos 41 anos, após enfiar dois projéteis no cérebro.


(Busto de Elisa Leech, António Soares dos Reis, 1888)