António Pires de Lima, notável Advogado,
partiu aos 80 anos de idade.
Interveio em milhares de processos
judiciais em tribunal. O volume de correspondência que ele recebia diariamente
era de tal ordem que os CTT atribuíram um código postal exclusivo para o seu
escritório lisboeta, localizado mesmo junto ao El Corte Inglés.
O jurista tinha sempre imensos casos para
contar. Pedi-lhe que convertesse alguns deles em texto. Antecedi-os de uma
breve apresentação e introduzi-os numa obra em que se narravam histórias
verídicas ocorridas em tribunal.
Deixo-vos com esse apontamento.
QUEM FOI?
Durante o triénio de 1999-2001, António
Pires de Lima exerceu as nobres funções de Bastonário da Ordem dos Advogados.
Foi eleito pelos seus pares com larguíssima
vantagem. Não foi grande a surpresa.
O Bastonário António Pires de Lima vinha
advogando com grande sucesso e brilhantismo. Digo Bastonário, porque não é
inteiramente correta a expressão ”antigo
bastonário" e muito menos "ex-bastonário”.
Os advogados que ascendem a essa elevada posição conservam o título, mesmo
depois de concluído o seu mandato.
Pires de Lima tinha já adquirido grande
notoriedade por obter ganho de causa em importantes matérias de difícil
resolução. Foi advogado nos mais importantes processos. Tornou-se formoso pela
lealdade, extrema competência e profundo saber.
Não surpreendeu, por isso, que a esmagadora
maioria dos advogados o quisessem como seu bastonário.
ARBITRAGEM
António Pires de Lima é conhecido como o
pai da arbitragem em Portugal.
Muitos conflitos, por vezes envolvendo
elevadíssimas quantias, não são levados a tribunal.
As partes em conflito preferem que o
litígio seja resolvido através de um conjunto de árbitros. Estes apreciam a
questão. Chegam a uma decisão que tem o valor de sentença.
Têm sido inúmeros os importadíssimos casos
apreciados por Pires de Lima.
Muitos deles assumiram particular
relevância pelos montantes pecuniários em causa.
Mas do ponto de vista humano, julgo que o
processo de arbitragem de maior valia terá sido o “caso dos hemofílicos".
A propagação da SIDA ainda se encontrava no
seu início. As defesas eram reduzidas. A esperança de vida dos infetados era
curta.
Como infelizmente sucedeu noutros países,
em Portugal muitos hemofílicos receberam transfusões com sangue contaminado.
O Estado não se furtou à responsabilidade.
Assumiu o pagamento de indemnizações. O problema era apurar o quantitativo para
cada um dos casos.
Se a matéria fosse levada a julgamento no
tribunal, as sentenças seriam proferidas apos o falecimento das malogradas
vítimas. Era quase certo. Entretanto, os doentes suportavam o sofrimento e os
tratamentos.
António Pires de Lima meteu mãos à obra.
Liderou uma organização de arbitragem. Em tempo recorde, foram atribuídas e
pagas as indemnizações aos infetados. Hoje, desgraçadamente eles já não se
encontram entre nós. Mas devem a este brilhantíssimo causídico o facto de se
ter feito a justiça possível, com enorme rapidez.
Como Bastonário, exerceu as funções com
elevada determinação e sempre em defesa da realização da Justiça. Nunca encarou
a Ordem como o sindicato ou o lóbi dos advogados. Reconheceu aos seus pares o
papel primordial que desempenham. Mas nunca esqueceu que a máquina da Justiça
pressupõe a coordenação entre todos os agentes nela envolvidos.
Entre as inúmeras obras que deixou na
Ordem, destaco o desenvolvimento da formação dos advogados estagiários.
Foi durante o seu mandato que foram criados
os patronos-formadores. São advogados experientes que, na comarca onde exercem,
acompanham o trabalho de todos os estagiários ali inscritos.
Dotado de rara habilidade, Pires de Lima
assegurou que os encargos com esta importante função sejam suportados pelo
Ministério da Justiça. É que esta inovação permitiu melhorar em muito a
representação dos utentes em tribunal. Todos ficam a ganhar com uma melhor
formação dos candidatos a advocacia.
CARGOS
As suas intervenções públicas assumem
sempre um peso enorme. É uma autoridade que todos ouvem com a máxima atenção.
Tive o enorme prazer de trabalhar com António
Pires de Lima no Conselho de Gestão do Centro de Estudos judiciários, que ambos
integrávamos. Eram ainda dele membros Cardona Ferreira, Presidente do Supremo
Tribunal de justiça, Cunha Rodrigues, Procurador-Geral da Republica, Jorge
Lacão, Deputado, Silva Paixão, Juiz Conselheiro, Pereira Batista, juiz
Desembargador e Figueiredo Dias, Professor da Universidade de Coimbra.
António Pires de Lima dá-nos a conhecer
três situações.
Ao primeiro, o autor chama-lhe “Um caso de Justiça”: Eu diria: um caso
de humildade, própria dos profissionais mais competentes. Terminou com a
libertação do arguido.
Denominou o segundo como “Caso de injustiça”. Eu pugno que o
advogado cumpriu o seu papel da melhor forma.
O último recebeu a designação de “Sucesso ou progresso do processo”. É um
bom exemplo de como a persistência, perspicácia e poder de argumentação do
advogado pode vencer a lentidão da justiça.
UM CASO DE JUSTIÇA, por António Pires de
Lima
Ao tempo, o furto de uso de viatura dava
lugar a prisão preventiva.
O caso era o de um menor que, numa
brincadeira de mau gosto resolveu utilizar a viatura estacionada na via pública.
Não a arrombou. O proprietário esquecera as chaves. Era a oportunidade para que
o rapaz demonstrasse aos amigos que sabia conduzir um carro.
Tirou-o do local, avançou uns duzentos
metros e voltou ao ponto de partida. Uma condução perfeita, hábil e que faria
inveja a muitos experimentados condutores.
Ao aplauso dos amigos juntou-se o par de
algemas de uns policiais que haviam ocorrido ao apelo do proprietário.
Então a prisão preventiva durava umas
semanas porque o investigador, além de competente, revelava uma grande
preocupação pelos direitos do cidadão, especialmente do que se presumia
inocente - era o tempo que alguns barbudos de bolsos cheios de Europa chamavam
de fascismo: por aquilo (não, por isto), umas semanas depois o Coletivo reunia
para o julgamento.
Apresentei a contestação, uma extensa peça,
fruto de longa ponderação sobre qual seria a melhor defesa para o arguido.
Concluída a prova e produzidas as
alegacões, o Senhor Juiz Presidente determinou que me aproximasse conjuntamente
com o representante do Ministério Público. Ouviu-o perguntar:
- O Senhor Advogado não preferiria
substituir esta contestação por um “ofereço
o merecimento dos autos” ou “peço
justiça”?
Estendi a folha que levava comigo.
No decorrer da audiência já tinha concluído
que me excedera nos argumentos.
Evitou-se uma condenação.
E muitas se evitam quando o defensor
oficioso em vez de fantasiar, limita a sua intervenção àquilo que pretende: que
se faca justiça.
UM CASO DE INJUSTIÇA, por António Pires de
Lima
O acidente ocorreu na 24 de Julho, em
Lisboa.
Para a definição da responsabilidade era
essencial apurar qual o local do embate e isto pela diferente visibilidade
entre as viaturas, conforme as diversas versões que se confrontavam.
A audiência foi longa, conflituosa, mas
culminou com a absolvição do meu representado.
Este, mostrava-se emocionado e grato, e
revelou o motivo: é que prevalecera a minha convicção de que o acidente fora em
local que culpava o terceiro, mas a verdade é que o acidente tinha ocorrido em
outro local.
UM SUCESSO OU O PROGRESSO DO SUCESSO, por António Pires de Lima
A ação foi intentada por uma entidade
reparadora de elevadores que pretendia cobrar o preço dos serviços prestados ao
proprietário do edifício que tinha prometido vender a quase totalidade das
frações autónomas, já habitadas pelos promitentes compradores. E, por isso,
requereu a intervenção destes, entre eles um personagem que, ao tempo, exercia
de Ministro de um dos múltiplos Governos de Portugal pós 25 de Abril.
Para a sua citação foi indicado o
Ministério e a sua localização no Terreiro do Paço.
A certidão negativa é um privilegio da
eficácia:
“Tendo-me
deslocado ao Ministério X, no Terreiro do Paco, e perguntado aí pelo Sr. A..
foi-me dito que não era conhecido, nem mesmo no serviço para onde se
diligenciou apurar da sua localização”.
Insisti que o Diário da Republica data e
estampa diplomas que traziam a assinatura do citando e que, das duas uma: ou a
publicação era de confiar ou o Ministério Publico deveria averiguar de quem
usurpava as funções.
A citação concretizou-se.
In Helder Fráguas, Se a
Justiça Falasse…, Lisboa, 2004