quinta-feira

ARRANJANDO-SE PÃO, EU TENHO AQUI CHOURIÇO



Era domingo, ao final da tarde. Vindo do Barreiro, eu seguia em direção à Ponte Vasco da Gama, para chegar a Lisboa.
Na autoestrada de acesso àquela travessia, o painel eletrónico anunciava um acidente. Realmente, 3 ou 4 quilómetros depois, o tráfego complicava-se.
Mesmo junto ao posto de abastecimento da Lançada, localidade conhecida pelas famosas enguias fritas, a fila de automóveis era muito compacta. Os veículos estavam quase sempre parados e, ocasionalmente, avançavam a um ritmo lentíssimo.
Acionei o sinal de pisca para a direita e entrei na área de serviço. Não estava com paciência para ficar retido no meio dos carros. Preferia tomar um café, ler o jornal e partir quando o problema se mostrasse resolvido.



ISTO RESOLVIA-SE COMO SE FAZIA EM ÁFRICA

Apenas uma funcionária se encontrava de serviço na cafetaria.
Naquele momento, era o suficiente.
Além de mim, havia somente um outro freguês. Estava sentado numa daquelas cadeiras mais altas, junto a uma mesa redonda, também ela mais elevada, apta a servir quem prefere permanecer de pé, contrabalançando o tempo passado no interior do veículo em que viaja.
Era um homem a aproximar-se dos 70 anos, de óculos com lentes grossas. À sua frente, tinha uma garrafa de cerveja, que ingeria diretamente pelo gargalo.
Após eu escolher o lugar para me sentar, ele mudou de posição para se aproximar de mim. Simpaticamente, lamentou ter-se esgotado o pão naquele estabelecimento. De contrário, ele até disponibilizaria os enchidos armazenados no seu porta-bagagens.
Depois, começou a dissertar sobre o engarrafamento, explicando que já durava há algum tempo:
- Isto é inaceitável. É perfeitamente possível retirar as viaturas acidentadas num instante. Quando eu estava em África, na guerra, vinha um helicóptero que levava as chaimites danificadas. O caminho ficava logo desimpedido.
Decidi não alimentar muito o diálogo e agarrei-me ao jornal.
Com os seus óculos de fundo de garrafa, ele foi repetir a narração dos enchidos junto de um casal que entretanto chegara.
Com doses reforçadas de cerveja, as mesmas abordagens iam-se sucedendo à medida que outras pessoas recorriam aos serviços da cafetaria, dotada de stock já muito reduzido no que respeita a géneros alimentícios. A falta de produtos panificados continuava a ser a justificação para não aparecerem as chouriças.



QUE FAZER?

O tempo ia passando, já escurecera e eu chegara à fase das palavras cruzadas que o periódico me proporcionava.
Até que o homem dos enchidos voltou ao diálogo comigo. De novo, nós os dois éramos os únicos clientes presentes. Explicou-me que o trânsito regressara à fluidez normal. Mostrei-me cético, mas ele insistiu. Espreitei, confirmando que poderia finalmente seguir viagem. Despedi-me brevemente. Mas igual a si próprio, ele não poupou nas palavras:
- Eu também já estou quase de partida. É só terminar aqui esta garrafa. Vou na sexta cerveja. Já estou meio bêbado.
- Nesse caso, não pode conduzir. Tem de arranjar outra maneira de chegar a casa – respondi eu.
- Não há problema. São poucos quilómetros – procurou ele descansar-me.


E O DIA SEGUINTE?

As portas automáticas deslizaram, franqueando-me a saída.
Hesitei.
Ignoraria a questão e esperaria que aquele automobilista chegasse bem a casa?
Ou denunciá-lo-ia, após o próprio ter decidido livremente abordar-me e dar-me a conhecer que estava alcoolizado?
Mesmo alertando as autoridades, será que chegariam a tempo?
Enquanto vacilava, recordei-me de um caso passado há anos. A empregada da estação de serviço de Palmela alertara as autoridades depois de um condutor embriagado ter abastecido a meio da noite. Já na autoestrada, o sujeito foi intercetado e confirmou-se que apresentava uma taxa de alcoolemia altíssima.
Pensando no que fazer, imaginei-me, no dia seguinte, a ler a notícia de um outro sinistro causado pelo homem que ali se pusera a consumir álcool. Não queria sentir-me responsável por nada ter feito.
Afastei uma eventual solidariedade para com quem desejava conversar cordialmente, com uma oferta virtual de salames e teorizações sobre o trânsito. Exclui a hipotética lealdade pela inconfidência relativa à quantidade de álcool.
Eu não iria encobrir aquela situação.
Marquei o número da divisão de trânsito da GNR de Coina e chamei a polícia.