Já aqui contei como foi trágica a vida de
Carlos Relvas, filho do político que criou o escudo, a moeda que circulou até
chegar a divisa europeia.
O avô deste Carlos Relvas tinha a mesma
graça. Carlos Augusto de Mascarenhas Relvas de Campos era o nome completo do
ascendente.
Dono de uma imensa fortuna, o velho Carlos
Augusto Relvas inaugurou, na Golegã, o melhor estúdio fotográfico português da
época, em 1876. Eram os primórdios da arte de fixar para sempre os instantes
numa película.
Tal como o neto, também não devia ser homem
feliz.
Pior ainda. Arruinava a vida dos outros.
Apoquentou-se com três dos seus filhos:
Francisco, José e Clementina.
FOTOGRAFIAS FEMININAS
Francisco até poderia vir a ser como o pai:
galifão marialva, admirador da monarquia, toureiro e entusiasta de fotografar
nus femininos.
Mas, no Entroncamento, ocorreu um fenómeno.
Ele morreu aí, com apenas 18 anos.
Dizia-se que fora um acidente. Provavelmente,
tratou-se de assassinato.
QUARTOS SEPARADOS
José era muito inteligente e estudioso.
Tinha uma enorme sensibilidade para as artes. Colecionava pintura e escultura.
Mas, para desgosto do pai, aderiu aos
ideais republicanos ainda como estudante.
E, como se não bastasse, parecia homossexual.
Tal como o seu correlegionário político, Manuel Teixeira Gomes, dois anos mais
novo, que chegou a Presidente da República.
Convencido pelo progenitor, José lá casou
com Eugénia, oriunda de abastada família viseense. Tiveram três filhos, um
deles o tal Carlos, que decidiu morrer aos 35 anos.
Porém, a verdadeira paixão de José Relvas
era Francisco Moreira, conservador do Museu Grão Vasco.
Quando encomendou o projeto da sua nova
casa, José instruiu o arquiteto no sentido de conceber dois quartos separados,
um para ele e outro para a mulher. A explicação era a de que gostava de ler na
cama até tarde e não queria incomodar a esposa.
O caminho estava livre para Augusto Lopes
Joly, feitor da sua propriedade rural, que se tornou amante de Eugénia. José
Relvas, o marido sabedor de tudo, aceitava com naturalidade. O empregado não
tinha motivos para sentir problemas de consciência. Era apenas um fiel colaborador
que satisfazia ambos os patrões.
MAIORAL
Como se não bastassem estas dores de
cabeça, Carlos Augusto Relvas deparou-se com mais uma contrariedade.
Encontrava-se a sua filha Clementina
solteira e chegou aos ouvidos paternos que António Nunes da Costa, trabalhador
agrícola maioral, rude e grosseiro, se vangloriava, pelas tabernas
goleganenses, das intimidades que mantinha com a respeitável menina.
E era mesmo verdade. Clementina amava-o.
Carlos Augusto enfureceu-se com esta conduta
da filha.
Ficou tão zangado que decidiu tirar uma
fotografia a si próprio com a expressão encolerizada que aquele desgosto lhe
colocou na face.
Mostrou o retrato à filha para
culpabilizá-la, mas não se deu ao trabalho de tentar persuadi-la a largar o
boçal Costa.
A realidade é que o camponês desapareceu e
nunca mais ninguém o viu.
Só muitos anos mais tarde se deslindou o
mistério. Carlos Relvas mandou matá-lo e o cadáver ficou emparedado na casa do
próprio fotógrafo amador.
Quando a grossa parede foi abaixo, o corpo
denunciava dois crimes: homicídio e ocultação de cadáver. Mas não revelava
roubo. Ainda lá estava o relógio suíço do desinfeliz, o seu anel e as esporas
em prata.
PEDINTE
Entretanto, Clementina desesperou com o
enigmático sumiço do seu adorado Costa.
Por temor reverencial pela ascendência
paterna, a menina aceitou contrair matrimónio com José da Cunha da Eça Azevedo,
juiz de profissão. Mas não tardou muito até ser decretada a separação judicial no
tribunal. Ela foi viver sozinha para Lisboa, onde pedia esmola aos transeuntes.
O advogado e historiador José Hermano
Saraiva nunca mais esqueceu o dia em que se cruzou com a mendiga no Chiado.
Deu-lhe uma moeda e não pôde deixar de observar a sua roupa, efetivamente de
qualidade, mas já muito coçada.