quarta-feira

MÉDICOS, PROCURADORES E LOUCOS

 

Há mais de uma década, no jornal Correio da Manhã, uma crónica de minha autoria, intitulada “Médicos, Juízes e Loucos”, despertou interessantes comentários de leitores.

Eu abordava um tema que é sempre controverso. Tratam-se das situações em que um juiz aplica a Lei de Saúde Mental. Decide que uma determinada pessoa deve ser forçada a permanecer no hospital, sujeita a tratamento psiquiátrico, contra o que é a sua própria vontade.

Referi-me ao caso de um setubalense que sofria de delírio de envenenamento. Recusava comer, não confiando sequer nos alimentos que a sua irmã lhe trazia, por recear que alguém os tivesse contaminado.

Mais tarde, inseri esse artigo no meu livro “Se a Justiça Falasse…”.

DOENTES SEM CONSULTA

Muito depois, deparei-me com uma situação complicada, também na cidade sadina.

As consultas psiquiátricas deixaram de ter lugar no edifício do Hospital de São Bernardo. Um dos médicos do departamento recusou prestar serviço no novo local, situado numa quinta fora dos limites da cidade, em plena estrada nacional, já a caminho de Azeitão.

O clínico argumentava que aquele espaço correspondia a uma injustificada estigmatização. Quase parecia um regresso a modelos ultrapassados de segregação: os velhos hospitais psiquiátricos, asilos, hospícios ou manicómios, distintos das restantes unidades hospitalares.

Foi acusado de cometer um crime de abandono de funções, por ter faltado a mais de uma centena de consultas, deixando os pacientes sem assistência.

Tive a honra de ele me escolher como seu Advogado de defesa.

Em julgamento, o psiquiatra acabou absolvido por uma Juíza altamente competente, que fez uma corretíssima aplicação da lei.


PERIGOSOS

Eu gozei do privilégio de privar com Cunha Rodrigues, quando ambos integrávamos o Conselho de Gestão do Centro de Estudos Judiciários.

Nas suas memórias, recentemente saídas do prelo, o magistrado narra um delicioso episódio.

O respetivo título bem poderia ser “Médicos, Procuradores e Loucos”.

Xiao Yang encontrava-se de visita a Portugal. O jurista chinês exercia as funções de Procurador-Geral da Província de Cantão. Posteriormente, viria a ser empossado como ministro da justiça.

Cunha Rodrigues era o líder máximo da Procuradoria-Geral da República, cargo que exerceu durante 16 anos.

Decidiu levar o visitante a conhecer o estabelecimento de Santa Cruz do Bispo, onde ficam internados doentes mentais julgados autores de delitos violentos. São doidos considerados perigosos, mas inimputáveis, para quem uma pena de prisão é inútil. Não sabem distinguir o bem do mal, não conseguem resistir a impulsos ou desvairam-se perante cenários imaginários. Agem violentamente, muitas vezes tornando-se assassinos, matando várias pessoas nalguns casos.

A receção estava bem organizada e contava com uma série de internados a darem as boas-vindas.

Revelavam apresentação cuidada. Compostos, surgiram de fato e gravata.

Um deles proferiu um discurso bem estruturado, com palavras amáveis.

A dada altura da palestra, o intérprete de língua chinesa sugeriu a Cunha Rodrigues que desse a visita por terminada. Xiao Yang tinha manifestado não se sentir seguro.

O Procurador português respondeu, procurando instilar tranquilidade. Tinham-lhe assegurado estarem ali apenas pessoas compensadas, com os fármacos em dia, de tal maneira que até dispunham de autorização para passear na via pública.

O tradutor especificou a causa da preocupação: um homem despenteado, de ar fraldisqueiro.

Com a cabeça, apontou na direção do indivíduo que destoava dos restantes.

Era o médico psiquiatra.