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“CONCLUÍ LOGO QUE SE TRATAVA DE UM ANORMAL”

Há tempos, mencionei aqui um curioso episódio envolvendo Zeca Afonso e Vale e Azevedo.

O talentoso músico foi autor da canção “O Coro dos Tribunais”. Aliás, ele nasceu em meio jurídico, pois seu Pai estudara Direito e era juiz.

Num certo momento de sua carreira, o Dr. João Nepomuceno Afonso dos Santos foi colocado em Timor-Leste.

O magistrado tinha três filhos. A mais pequenita seguiu para a ilha do Pacífico, com ele e a esposa. Mas os dois rapazes ficaram em Belmonte, confiados ao tio Filomeno. Situacionista, o homem era tabelião e desempenhava as funções de presidente da Câmara Municipal. Não escondia ser convicto fascista, adepto do ditador Franco e admirador do nazismo.

Já o irmão jurista, de partida para a Oceânia, era uma pessoa completamente diferente.

Nem imaginava como se revelaria tão acertada aquela opção de deixar o João e o Zeca em Portugal.


INVASÃO

Estava-se em 1939 e rapidamente a Segunda Grande Guerra assumiu contornos mundiais.

Os australianos ocuparam Timor em 1941.

A invasão decorreu em moldes altamente rocambolescos. As forças ocupantes dirigiram-se, com a máxima educação, ao palácio do governo português e anunciaram que passariam a comandar os destinos do território.

O pobre governador imaginou a desilusão de Salazar. Pediu que se simulasse uma pequena batalha na praia, por forma a alegar que os soldados portugueses tinham procurado resistir. A conversa decorreu com tamanha cordialidade que os invasores estrangeiros acederam à encenação bufa, com assustador tiroteio noite fora. A saraivada foi bem audível por todos, mas não houve feridos.

A população não desgostava dos novos líderes e agradeceu o desenvolvimento económico, a construção de estradas e os novos hospitais.

 

JAPÕES

O diabo chegou com a invasão nipónica, em 1942.

Os japões, assim denominados em moldes depreciativos, reduziram a presença australiana a uns quantos militares escondidos na montanha.

Criaram campos de concentração para civis, vedados com arame farpado. Passava-se fome, sofriam-se torturas, as pilhagens deixaram a população sem bens, dezenas de pessoas foram cruelmente mortas, muitos pereceram famélicos, outros sucumbiram a doenças e grande parte das raparigas jovens transformaram-se em escravas sexuais, as "mulheres de conforto".

A destruição era impressionante.

Do tribunal nada se salvou, perdendo-se todos os processos e todos os registos, quer do juízo quer do notariado”, confirmava o governador Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho, em comunicação oficial.

Alcançada a paz três anos depois, o militar português foi substituído pelo capitão Óscar Ruas.



RELATÓRIO

Regressado a Lisboa, Ferreira de Carvalho foi encarregue de elaborar o “Relatório dos Acontecimentos em Timor”. O objetivo era reescrever a história, culpabilizando os funconários púbicos pelo fracasso militar, absolutamente inevitável perante a desproporção de meios.

William Watt Legatt, numa fase inicial, e depois, os desalmados Sada Shi Chi, Tsuchihashi e Yamada, tinham dominado a ilha durante quase 4 anos.

Simplesmente, o oficial português tinha uma explicação: “salvo raras exceções, eu não podia contar entre o funcionalismo categorizado com colaboradores leais”. Foi este o esclarecimento que ele apresentou quando concluiu aquele relatório, em 1947, dois anos depois de chegar à capital do frágil império.

CAMPO DE CONCENTRAÇÃO

O Pai de Zeca Afonso, juiz em Díli, não escapou à abusiva inclusão no rol dos desleais. Uma série de “categorizados” que não colaboraram lealmente com o governador, deixando-o praticamente isolado perante o inimigo.

Verdade seja dita, o magistrado pouco podia fazer, quando “do tribunal nada se salvou”, segundo as palavras do desinfeliz autor do documento, abandonado pelo “funcionalismo categorizado”.

Mesmo assim, confinado a Liquiçá, sob arame farpado, “para sua própria proteção” no dizer dos japoneses, o Dr. Afonso procurava auxiliar a população, necessitada de comida, agasalhos e medicamentos. Chegou mesmo a participar em trabalhos agrícolas, visando colmatar a fome.

MÁRCIO

Para sustentar a tese de que o juiz de Díli não estivera à altura da situação, o antigo governador socorreu-se do depoimento de outro márcio, José Joaquim da Silva e Costa, que fora enviado pelo governo português a Timor em 1944.

O capitão tinha-se realmente encontrado com o magistrado, mas a reunião não durou mais do que 15 minutos.

Dificilmente, poderia retirar quaisquer ilações.

Por escrito, o militar informou o Conselho Superior Judiciário que não precisara de mais tempo, assim se referindo ao homem de leis: “concluí logo que se tratava de um anormal”.

Um inútil, que “nada faz, nem o tribunal funciona, simplesmente porque ele não quer”. “Apesar de ter sido chamado pelo governador e lhe ter prometido pôr o tribunal de novo a funcionar, tendo sido removidas todas as dificuldades por ele postas, não mais quis saber”. Ou seja: “justiça e tribunal administrativo não funcionam porque o juiz não quer trabalhar”.

E o mandrião ainda teria surgido com uma ideia aviltante que “perante os indígenas devia ter efeitos desastrosos para o nosso prestígio”: cultivar a horta.

Veja-se bem! “Um juiz que na sua profissão não trabalha apesar de instado pelo Sr. Governador, mas que não hesita em cavar a terra. Simplesmente inacreditável”.

Sem tribunal e sem processos, todos sabiam que João Nepomuceno não tinha possibilidades de exercer o seu mister.

Mas, dois anos depois do fim da guerra, quando tudo regressara à normalidade, foi injustamente acusado de ser um dos muitos que não teriam sido fiéis para com o governador português. Serviam de bodes expiatórios para a derrota militar e a impossibilidade de enfrentar as atrocidades nipónicas.

Tudo se encontra bem documentado numa notável obra: “O Último dos Colonos”. Foi escrita pelo irmão de Zeca Afonso, que é um Advogado de reconhecido mérito.