Aos 73 anos, Luísa Novo Vaz deixou-nos.
Era Presidente da Santa Casa da
Misericórdia de Viana do Castelo, cidade onde se notabilizou como
brilhantíssima Advogada. Integrou o Conselho Superior da respectiva ordem
profissional.
A jurista tinha sempre imensos casos para
contar. Pedi-lhe que convertesse um deles em texto. Antecedi-o
de uma breve apresentação e coloquei-o numa obra em que se narram histórias
verídicas ocorridas em tribunal.
Deixo-vos com esse apontamento.
QUEM FOI?
Luisa Novo Vaz é conhecida a nível nacional
como excelente colunista de referência. A sua experiência como Advogada de
sucesso, aliada às qualidades literárias, permitem-lhe redigir crónicas
admiráveis, que os leitores muito apreciam.
Goza de grande prestígio em Viana do
Castelo, onde possui escritório.
Como se não lhe bastasse dar vazão à
clientela que a procura em razão da sua competência, ainda tem outras
actividades.
É presidente da delegação da Ordem dos
Advogados em Viana do Castelo. Em cada comarca, existe uma representação da
Ordem. Compete-lhe manter devidamente apetrechadas as salas dos advogados
existentes nos tribunais. Presta apoio logístico aos causídicos que se
encontram de serviço.
Organiza as escalas de defensores para
indivíduos que são detidos e sujeitos a interrogatório. Em muitos casos, são
realizadas palestras e confraternizações.
É necessário empenho para presidir à
delegação. Não é qualquer um que se disponibiliza para tal missão, exercida em
regime de voluntariado.
Ainda assim, Luísa Novo Vaz assumiu esse
encargo na sua cidade. Fá-lo com muito êxito.
Dirige ainda o Gabinete de Consulta
Jurídica local destinado a providenciar
aconselhamento a pessoas carenciadas.
A denominação que deu ao seu caso é
sintomático: “Graciana e o desgosto”.
A viúva pede uma indemnização pelo
sofrimento causado com a perda do marido num estúpido acidente de viação.
Atribuir compensações por estragos
materiais é muito simples: basta analisar recibos ou mandar proceder a
avaliações.
Mas a vida de um juiz complica-se muito
quando se trata de reparar danos morais ou não patrimoniais. É muito difícil
calcular o grau de sofrimento, amargura, dor e angústia.
Soube de um caso de atropelamento de uma
jovem.
O Advogado afirmou, por escrito, que antes
do acidente, ela apresentava umas pernas bem feitas, das quais se orgulhava.
Tinha muito gosto em usar mini-saia. Por causa das cicatrizes e demais
sequelas, tinha deixado de usar tal peça de vestuário. Estimava os danos numa
considerável quantia.
No processo encontravam-se várias
fotografias da senhora em corpo inteiro, captadas antes do sinistro. Embora
seja matéria subjectiva, a generalizada era de que o causídico tinha toda a
razão quanto aos factos.
Não deve ter sido tarefa fácil para o Juiz
decidir a causa no respeitante à indemnização pedida.
Há especialistas que formulam tabelas.
Consideram as dores físicas e a mágoa psicológica. Dizem que uma fractura na
rótula dói cinco vezes que um golpe na mão. Ou que a morte de um filho é dez
vez pior do perda do emprego. Mas neste domínio, julgo que a aritmética nunca
muito exacta.
Presume o Código Civil que o
desaparecimento de um familiar corresponde à perda de um ente querido. Contudo,
o caso da viúva Graciana dá que pensar...
GRACIANA E O DESGOSTO,
por Luísa Novo Vaz
Ouviu o seu nome gritado no átrio entre um rumor de vozes. Respondeu ”presente”, levantando timidamente a mão. Como se ainda andasse na escola e não tivessem passado trinta anos sobre a sua vida.
A funcionária continuou a chamada. O átrio
foi-se esvaziando gente e de vozes e Graciana, ali, pregada à parede como um
retrato. A preto e branco.
A funcionária perguntou:
- A senhora é testemunha?
-Sou a viúva.
- Não lhe perguntei o estado civil.
Graciana respondeu que estava ali por causa
da audiência da morte do marido, que não vira o acidente, que...
Levou-a para uma sala e disse-lhe:
Sente-se aí — apontou-lhe um banco corrido
— e levante-se quando entrar o juiz.
Graciana nunca tinha visto um juiz ao vivo
e decidiu, à cautela, ficar de pé. Olhou para a advogada que lhe sorriu, não
percebendo que os olhos dela gritavam por socorro. Falavam entre si, os
advogados.
Era cedo ainda, não lembra a hora, mas
lembra-se de ter lavado um tanque de roupa, de ter feito o almoço para o marido
levar para a fábrica, de ter dado de comer às gatinhas e ao cão, de ter feito
as camas. As miúdas estavam na cozinha a tomar o pequeno almoço feito de pão e
de uma água de cevada. Só.
Foi o patrão que lhe trouxe a notícia.
- Houve um acidente. O Honório pegou na
carrinha e caiu pela ribanceira abaixo. Não lhe pude valer. Uma desgraça.
Graciana olhou para o cão, deitado ao seu
lado, com o focinho entre as patas.
- Aquela mania de querer ser motorista —
desculpava-se o patrão — matou-o.
A voz parecia-lhe longe. Mania, essa e muitas
outras. Ali, na sua frente, a notícia de Honório. Um torpor a subir-lhe o corpo
e um silêncio a tomar conta da casa. Graciana poucos filmes tinha visto na sua
vida. Sem saber explicar, via-se numa cena de filme, cuja fita, de repente,
encravara.
Levantem-se!
Todos se levantaram. O filme recomeçara,
agora com outro registo. Era alto, o juiz — pensou Graciana. Podem sentar-se. E
todos se sentaram.
Vieram as testemunhas, uma a uma. O
Ribeiro, colega de Honório, disse que o falecido pegou na carrinha com ordem do
patrão. O Mendes não viu nada, o Guerreiro, polícia reformado, viu o veículo
estatelar-se contra o penedo no fundo da ravina, a Fernanda sabia da paixão do
Honório por automóveis. Joaquim garantiu ao tribunal que Honório tinha prática
na condução, que os travões da carrinha é que eram fracos. E disse da sua razão
de ciência: era o mecânico da empresa.
Graciana olhava a pintura que estava por
detrás do juiz: Moisés, o seu povo e as doze tábuas da lei. Lembrou-se do livro
da doutrina que tinha uma imagem parecida.
A advogada alegava no processo que Graciana
e Honório se davam bem, eram felizes um com o outro. Que era imenso o desgosto
de Graciana com a morte do marido e incerto agora o futuro económico da
família.
Passou-se à fase da inquirição das vizinhas
que vinham depor a essa matéria, de prova fácil, claro.
- Davam-se bem a Graciana e o Honório? Era
amigo dela e das filhas? – perguntou
a advogada.
- A senhora doutora acha que aquilo era
dar-se bem? Uma mulher apanhar desde que se levanta até que se deita? Com o que
ele tivesse à mão? Acha?
- Lá teriam os seus desentendimentos...
como é natural...
- Olhe, senhora doutora, chame-lhe o que
quiser. Pois chame-lhe o que quiser. Pois o que tenho a dizer — a testemunha
virou-se para o juiz — é que , no dia da morte, o desgraçado atirou-a contra a
parede, chamou-lhe nomes que eu não digo diante de V Exa. e que se não fosse o
meu homem ir lá acudir quem estava agora no cemitério era ela. Aquilo foi
sempre uma pouca vergonha.
- Mudemos de assunto. Apesar de tudo, ele
era o sustento da família, não era?
A testemunha deu uma gargalhada. A oficial
de justiça fez-lhe sinal. O juiz, lá no alto, ouvia.
- Gastava tudo em vinho. A coitada da
mulher ainda tinha que lhe dar do pouco que ganhava «ao jornal» para o tabaco.
A advogada deu por findo o interrogatório.
Entrou outra testemunha.
- Parece que eles não se dariam lá muito
bem, que teriam os seus desentendimentos... apesar de tudo isso, Graciana
sofreu desgosto com a morte do marido, não sofreu?
- Isso de sentimentos cada um sabe de si,
mas que agora ela está num céu isso está. Olhe, senhora doutora, ela está agora
muito melhor, ela e as filhinhas. O Honório não lhes fez falta nenhuma.
Foi então que o juiz olhou para Graciana:
serena, longe dali.
In Helder Fráguas, Se a Justiça Falasse…, Lisboa, 2004